Por Alessandro Lima
1. Introdução
Ao longo da história da Igreja, o desenvolvimento do Direito Canônico sempre caminhou em íntima união com a teologia e a vida pastoral da Igreja. No final do século XIX e início do século XX, esse campo do saber eclesial alcançou uma de suas expressões mais elevadas com a obra monumental Ius Canonicum, elaborada pelos renomados jesuítas Francisco Xavier Wernz e Petri Vidal. Com notável erudição e fidelidade à tradição, esses autores ofereceram não apenas um comentário técnico das normas canônicas então vigentes, mas uma verdadeira teologia jurídica da Igreja, profundamente enraizada na doutrina patrística e escolástica.
O presente trabalho visa resgatar os principais pontos abordados por Wernz e Vidal, com especial atenção às posições sedevacantistas que negam a legitimidade dos papas pós-conciliares (de João XIII ao atual Leão XIV).
2. O Ius Canonicum e Seus Autores
Entre os grandes mestres do Direito Canônico na virada do século XIX para o século XX, destacam-se com especial relevo os nomes do Pe. Francisco Xavier Wernz, S.J., e do Pe. Petri Vidal, S.J., autores da monumental obra Ius Canonicum, que constitui até hoje uma das mais completas e influentes exposições do direito da Igreja segundo a tradição clássica.
O Pe. Wernz nasceu em 1842, na cidade de Rottweil, na Alemanha. Ingressou na Companhia de Jesus e tornou-se um dos principais canonistas do seu tempo. Lecionou por décadas na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, onde formou gerações de especialistas em Direito Canônico. Sua produção científica se consolidou na obra Ius Canonicum, publicada originalmente em vários volumes a partir de 1898. Trata-se de uma sistematização abrangente do direito canônico vigente antes do Código de 1917, baseada nas fontes do Corpus Iuris Canonici, nas decretais pontifícias, nos concílios ecumênicos e na doutrina tradicional. Pe. Wernz não apenas comentava as normas existentes, mas articulava uma verdadeira teologia jurídica da Igreja, com rigor, clareza e profunda fidelidade à tradição eclesial. Em 1906, foi eleito Prepósito Geral da Companhia de Jesus, cargo que ocupou até sua morte, em 1914.
Após o falecimento de Pe. Wernz, coube ao seu discípulo direto, o Pe. Petri Vidal, S.J., completar e atualizar a obra. Nascido na Catalunha, em 1872, Pe. Vidal pertenceu à mesma escola jesuítica de rigor teológico-jurídico e deu continuidade à estrutura do Ius Canonicum com fidelidade ao espírito de seu mestre. Sob sua responsabilidade, a obra foi sendo ampliada, incorporando a nova legislação canônica promulgada por Bento XV em 1917. Pe. Vidal não apenas manteve o estilo e profundidade do trabalho de Pe. Wernz, mas soube também contextualizar e explicar os novos cânones com base na tradição anterior, fazendo a ponte entre o direito clássico e o direito codificado.
Publicada em sete volumes, a obra Ius Canonicum permanece como referência obrigatória para o estudo do Direito Canônico tradicional. Nela se encontra não apenas o comentário técnico das normas jurídicas, mas uma exposição orgânica da constituição divina e jurídica da Igreja, em sua dimensão pública, sacramental, penal e processual. A clareza metodológica, a precisão terminológica e a coerência doutrinal fazem desta obra uma síntese insuperada da ciência canônica nos moldes clássicos. Não por acaso, o Ius Canonicum de Wernz e Vidal foi amplamente utilizado pela comissão pontifícia que redigiu o Código de 1917, influenciando tanto sua estrutura quanto sua redação.
Assim, o trabalho destes dois canonistas representa a culminação do Direito Canônico clássico na transição para a codificação do século XX. Estudar Wernz e Vidal é, portanto, reencontrar o núcleo teológico e jurídico da tradição eclesial latina em sua forma mais depurada.
3. A Questão de Um Papa Herege
O Papado é tratado com especial atenção no Tomo II do Ius Canonicum, onde questão da restrição do poder papal no caso de um papa herege é tratado no Título VII, no artigo quarto intitulado “Art. 4 – Sobre a restrição e cessação do ofício e do poder do Romano Pontífice”. No segundo tópico deste artigo intitulado “II. Sobre a cessação da potestade do Romano Pontífice”, são abordados os motivos que levariam um papa a perder o seu pontificado. Os seguintes motivos são elencados:
- Pela morte (n. 450);
- Pela renúncia (n. 451);
- Pela insanidade (n. 452);
- Por heresia notória e publicamente divulgada (n. 453).
3.1 A Perda do Pontificado Por Um Papa Herege
Exatamente o que consta no n.453 é de particular interesse para o nosso presente trabalho. Vamos a ele (com tradução livre a partir do texto original latino, e notas com numeração original entre colchetes):
“453. Por heresia notória e publicamente divulgada, se o Romano Pontífice nela incorrer, ele perde ipso facto, isto é, automaticamente, antes mesmo de qualquer sentença declaratória da Igreja, sua potestade de jurisdição [Nota 162: Ele não teria realmente renunciado livremente; a deposição de um verdadeiro Papa é inválida, do mesmo modo que a renúncia feita meramente “pro forma” por Gregório VI não teria produzido efeito jurídico, isto é, a vacância da Sé Apostólica, se não tivesse havido o consentimento livre de Gregório VI; consequentemente, a eleição do sucessor de Gregório VI teria sido inválida, o que em geral não é colocado em dúvida. Se Hauck, Kirchengeschichte Deutschlands, t. III, p. 589, nega a deposição e a renúncia de Gregório VI, e defende que Gregório VI tenha renunciado, sustenta uma absurda contradição canônica].”
Com efeito, Wernz e Vidal são adeptos da quinta opinião teológica sobre a hipótese de um papa ser herege. Mas antes de fundamentarem esta sua escolha e explicar como seria a sua possível aplicação canônica num caso real (coisa que os sedevacantistas simplesmente não fazem), eles vão explicar as cinco opiniões existentes e que foram discutidas por São Roberto Belarmino.
Sobre a primeira opinião:
“Sobre essa questão, existem cinco opiniões, das quais a primeira nega o próprio fundamento da questão, isto é, que o Papa, mesmo como doutor privado, possa cair em heresia. Essa opinião, de fato, é piedosa e provável [Nota 163: Bellarmino, De Romano Pontifice, l. I, cap. 30; Phillips, l.c. I, p. 34; Bouix, De Papa, t. II, p. 653 ss.], mas não pode ser considerada certa nem comum [Nota 164: Bellarmino, l.c. pr. et l. IV, cap. 6; Billot, l.c. t. I, p. 629 ss.; Inocêncio III, Sermão IV na consagração do Pontífice: “O Pontífice pode ser julgado pelos homens ou, antes, ser mostrado como julgado, se cair em heresia; pois quem não crê já está julgado”. No entanto, os Cânones 6, C. D. 40; c. 13, C. II, q. 7, que são citados sobre o Papa herege, são apócrifos ou de valor duvidoso. Cfr. Phillips, l.c.]. Assim, a questão, admitido o pressuposto, deve ser resolvida.”
Sobre a segunda opinião:
“A segunda opinião sustenta que o Romano Pontífice, mesmo por heresia oculta, perde ipso facto sua potestade. Esta opinião, Bellarmino com razão diz que padece de falso pressuposto, pois considera que os hereges ocultos estão totalmente separados do corpo da Igreja. Cfr. Palmieri, De Romano Pontifice, p. 40.”
Sobre a terceira opinião:
“A terceira opinião defende que o Romano Pontífice nem mesmo por heresia manifesta perde sua potestade ipso facto, nem pode ser privado dela sequer por deposição. Essa afirmação, com toda razão, é chamada por Bellarmino de «extremamente improvável».”
Sobre a quarta opinião:
“A quarta opinião, com Suarez, De fide, disp. 10, sect. 6, n. 6 e seguintes, Caietano e outros, sustenta que o Papa, por heresia mesmo manifesta, não está ipso facto deposto, mas que ele pode e deve ser deposto por meio de uma sentença ao menos declaratória do crime. Sobre isso, Bellarmino afirma: «Essa opinião, em meu juízo, não pode ser defendida.»”
Sobre a quinta opinião:
“Por fim, existe a quinta sentença de Bellarmino, que desde o início é expressa e, com razão, é defendida como mais provável e comum por Tanner e outros [Nota 165: Bellarmino, l.c., t. II, cap. 30; Bellarmino, De Conciliorum auctoritate, l. II, cap. 17, 18; Kober, De Depositione, p. 585 ss.; Wilmers, l.c., p. 258; Billot, l.c.]. De fato, aquele que já não é mais membro do corpo da Igreja — isto é, da Igreja como sociedade visível — não pode ser cabeça da Igreja universal. Ora, o Papa que caísse em heresia pública, ipso facto, deixa de ser membro da Igreja; portanto, também ipso facto deixa de ser cabeça da Igreja.”
Aqui imagino que os sedevacantistas estejam soltando fogos de artifício de tanta alegria!
Porém, como a Igreja é uma sociedade visível, a perda do pontificado de um papa deve surtir os devidos efeitos nesta sociedade. Se um papa legítimo deixou de sê-lo em função de sua heresia pública e manifesta, isto não pode ser verdade apenas na imaginação de quem defende isto, ou seja, não pode ser verdade apenas no “fórum das consciências individuais”, como fazem os protestantes. E é exatamente aqui que Wernz e Vidal vão fazer as devidas distinções separando os homens dos meninos:
“Além disso, um Papa publicamente herege, que deve ser evitado por mandamento de Cristo e dos Apóstolos e por perigo à Igreja, deve ser privado de sua potestade, como quase todos admitem. Contudo, não pode ser privado por uma simples sentença declaratória.
Com efeito, toda sentença judicial de privação pressupõe uma jurisdição superior sobre aquele contra quem a sentença é proferida. Ora, o Concílio Geral, na sentença dos adversários, teria jurisdição superior à do Papa herege. Mas se, segundo a suposição deles, antes da sentença declaratória do Concílio Geral, o Papa ainda mantém sua jurisdição papal, então o Concílio não pode proferir uma sentença declaratória pela qual o Papa perca sua potestade; pois isso seria uma sentença proferida por um inferior contra o verdadeiro Romano Pontífice [Nota 166: Contra Hinschius, l.c., t. I, p. 308, que erra ao sustentar que o caso de heresia e de cisma seria exceção ao princípio geral «Prima Sedes a nemine iudicatur» (A Sé Apostólica não pode ser julgada por ninguém). Na verdade, ele afirma, sem razão sólida, que nesses casos o Concílio Geral não proferiria apenas uma sentença declaratória, mas uma verdadeira sentença de privação ou deposição do Romano Pontífice.].
Portanto, é absolutamente necessário dizer que ipso facto o Romano Pontífice herege cai de sua potestade. A sentença verdadeiramente declaratória do crime, que, embora seja apenas declaratória, não deve ser rejeitada, faz com que o Papa herege não seja propriamente julgado, mas antes seja mostrado como julgado [Nota 167: Cfr. Inocêncio III, l.c., no Sermão IV; também D. 79; Bellarmino, De Romano Pontifice, l.c., p. 805; Kober, l.c., p. 585.], isto é, o Concílio Geral declara o fato do crime, pelo qual o próprio Papa herege se separou da Igreja e se privou de sua dignidade.”
Para quem sabe ler, Wernz e Vidal estão dizendo que para que a aplicação da quinta opinião teológica surta seus efeitos no foro externo, ela depende de uma declaração de um Concílio Geral, que dê a certeza moral para todo orbe católico de que um papa perdeu o seu pontificado ipso facto por heresia. Com efeito, até mesmo São Roberto Belarmino não excluiu o papel da Igreja neste caso, por isso ele afirma que “razão pela qual ele [o papa herege] pode ser julgado e punido pela Igreja.”
Esta sentença de Wernz e Vidal também refuta a tese esdrúxula do Pe. Cekada de que um papa herege perderia automaticamente o pontificado por pecado de heresia [1].
3.2 Um Concílio Geral Não Possui Poder Coercivo Sobre o Papa Herege
Outro aspecto muito importante na doutrina canônica de Wernz e Vidal é a de que embora um concílio geral deva declarar a perda do pontificado de um papa herege, para que este fato surta todos os seus efeitos no foro externo e torne-o conhecido por todos os católicos, tal declaração só seria válida se o papa herege se submetesse voluntariamente ao escrutínio conciliar.
Este tópico é tratado no n. 453. Vamos ao texto:
“454. Escolio. O crime de heresia é, com toda razão, equiparado ao cisma. Cfr. Tanner, De spe et caritate, q. 6, dub. 2.
Exceto pela heresia, não existe crime algum pelo qual o Romano Pontífice, ipso facto, perca sua jurisdição, ou possa ser deposto por sentença judicial. Cfr. Suarez, De fide, disp. 10, sect. 6, n. 14 ssq. Com efeito, um Papa verdadeiro e indubitável, por outro crime que não a heresia, não perderia sua jurisdição ipso facto, a não ser que isso ocorresse por uma ordenação positiva de Deus ou pela própria natureza da coisa. Ora, tal ordenação positiva de Deus não existe, e, pela própria natureza da coisa, fora do caso de heresia, a jurisdição pontifícia não se perde. Pois o Papa, ainda que seja iníquo por outros delitos, permanece sempre membro do corpo da Igreja.
Por outro lado, para que um Papa verdadeiro e indubitável pudesse ser deposto por sentença judicial, seria absolutamente necessária uma autoridade que, após conhecer devidamente a causa, com verdadeiro poder coativo, lhe aplicasse a sentença judicial. Ora, o Romano Pontífice, em virtude de seu primado, não pode ser julgado por nenhuma autoridade humana, mas somente por Deus [Nota 168: Cfr. cân. 1556 juntamente com cap. 13, X de iudiciis II, 1; cap. 6, X de electione I, 6; Bellarmino, De Auctoritate Conciliorum, cap. 17, 18, 19; Fagnanus, in cap. 6, X de electione, n. 21; Phillips, l.c., t. I, §31; Kober, l.c., p. 549 ss.; Saegmueller, l.c., p. 144 ss.; 233; Bouix, De Papa, t. II, p. 628 ss., 629 ss.]. A essa razão, de natureza doutrinal, se acrescenta a tradição e a prática constantes da Igreja [Nota 169: Cfr. Hinschius, l.c., t. I, p. 296 ss., que defende, contra os católicos, que, ao menos no direito antigo, a deposição de Papas legítimos não era reprovada (falando da disciplina então vigente), e que a deposição de intrusos e usurpadores, que nunca foram legítimos Pontífices, não era proibida. Contudo, ele manifesta uma confusão evidente entre os fatos de usurpações e o direito de depor príncipes com o braço secular, e o iudicium discretionis (juízo de prudência), próprio da Igreja, com o iudicium proprie dictum (juízo jurídico estrito), próprio do foro judicial.]. Toda a tradição sempre manteve este princípio: «A Sé Apostólica não pode ser julgada por ninguém», como está claro na causa de Símaco e Pascoal II. Ademais, tanto os Concílios Gerais, quanto o Colégio dos Cardeais, quanto os Imperadores — instâncias nas quais se poderia supor a existência de tal autoridade — foram constantemente reconhecidos pela Igreja como não tendo qualquer poder sobre o Papa. Cfr., por exemplo, a causa de Eugênio IV.”
Embora um papa seja flagrantemente um herege público, a pertinácia de sua heresia (contatação necessária para provar que o papa é um herege formal) só poderia ser constatada pelo concílio geral, se o papa se submetesse voluntariamente ao seu escrutínio. Pois até aí, supõe-se que ele ainda seja legítimo, portanto, não haveria poder na terra capaz de submetê-lo coercivamente à verificação conciliar.
Isso fica ainda mais claro nos parágrafos seguintes:
“Os próprios Romanos Pontífices jamais se submeteram, de forma voluntária, a um julgamento coativo, mas apenas a um julgamento de discrição. Cfr. as causas de Dâmaso, Símaco e Leão III.
Além disso, não há paridade entre eleição e deposição do Romano Pontífice. Na eleição, de fato, se realiza a designação do Papa pelo ministério dos homens; mas disso não se segue que os homens também possam depô-lo. Pois é pela eleição que alguém se torna Papa; mas na deposição se exerce uma autoridade que não foi conferida sobre aquele que já é Papa de fato. Portanto, a deposição até mesmo de um Papa iníquo não pode ser feita nem licitamente nem validamente. Os meios justos contra um Papa iníquo, segundo Suarez, Defensio fidei cath., l. IV, cap. 6, nn. 17 e 18, são sobretudo os auxílios da graça de Deus, a proteção singular do anjo da guarda, a oração da Igreja universal, a advertência secreta ou até pública, ou a correção fraterna, bem como a legítima defesa, seja essa física ou moral contra sua violência.”
3.3 Se É Possível Duvidar da Eleição de Um Papa
Para excusar-se do argumento de que não consideram os papas conciliares legítimos em função da quinta opinião belarminiana, os sedevacantistas dizem que suas razões radicam nas suas supostas eleições inválidas. Alguns alegam que o direito divino impossibilita a eleição de hereges ao pontificado [2]. Outros invocam o princípio “Papa Dúbio é Papa Nulo” para negar-lhes o reconhecimento pontifício. Sobre isso vamos ver o que ensinaram Wernz e Vidal no mesmo n. 454:
“Os autores antigos aceitaram amplamente o axioma: «Papa duvidoso não é Papa», e o aplicaram para resolver as dificuldades surgidas no grande cisma do Ocidente [Nota 170: A essa aplicação, responderam com razão Bellarmino e Suarez, entre outros, bem como Ballerini, Phillips, Bauer, Cardeal Hergenroether, Cardeal Franzelin, De Ecclesia, p. 233 ss. Cfr. também Bouix, De Papa, t. II, p. 673 ss.]. De fato, esse axioma admite várias interpretações: o Papa pode ser considerado duvidoso, não no sentido negativo, mas positivamente duvidoso, isto é, após um diligente exame dos fatos, os homens competentes na Igreja Católica declaram: «Não consta do valor da eleição canônica deste Romano Pontífice». Além disso, as palavras «Papa nulo» não se referem necessariamente a um Papa que até então era certo e indubitavelmente aceito por toda a Igreja, mas cuja eleição depois passa a ser duvidosa, de modo que se tornaria um Papa duvidoso e, por essa razão, perderia a potestade pontifícia já adquirida. Esse sentido do axioma «de Papa nulo» parece censurável, pois toda a Igreja não pode absolutamente separar-se de um Romano Pontífice legitimamente eleito, por causa da unidade prometida por Cristo à sua Igreja.”
A hipótese aventada na explicação para fins didáticos é exatamente o que fizeram os sedevacantistas em relação a João XXIII e Paulo VI. Muito tempo depois de suas respectivas eleições, é que se aventou a possibilidade de serem papas ilegitimamente eleitos. Wernz e Vidal então dizem recorrendo a uma sólida tradição canônica que esta possibilidade simplesmente não existe! Eles continuam:
“Porém, a segunda parte do axioma pode ter este sentido aceitável: que um Romano Pontífice, cuja eleição canônica não consta [Nota 171: Cardeal Franzelin, l.c., p. 232, n. 4, i. f.; Camarda, l.c., p. 234, 256 ss., onde discute sobre exceções legítimas contra um eleito Romano Pontífice, e observa corretamente que, contra um Papa eleito e aceito por toda a Igreja, não se admite exceção. Esse consenso da Igreja não é, por sua própria força, uma certeza de que aquele que não foi eleito se torne eleito, porque aquele que foi canonicamente eleito pelos cardeais, antecedentemente à aceitação da Igreja, é legitimamente Papa. (Franzelin, l.c., p. 234). Portanto, essa aceitação da Igreja não é causa, mas apenas efeito da validade infalível da eleição. E com razão se conclui que se toda a Igreja abandonasse um Papa eleito, como, por exemplo, Pedro de Luna, também conhecido como *Bento XIII.], e no qual, após exame rigoroso, persistem dúvidas positivas e sólidas, nunca tenha adquirido de Cristo Senhor a jurisdição papal.”
Logo, segundo doutrina exposta por Wernz e Vida, os sedevacantistas estão errados em negar reconhecimento a um pontífice reconhecido como tal universalmente, pois “essa aceitação da Igreja não é causa, mas apenas efeito da validade infalível da eleição”. Aqui também como no caso da perda do pontificado de um papa herético, não é o juízo privado de particulares que possui alguma valia, mas APENAS o juízo da Igreja, ou como disseram Wernz e Vidal “após um diligente exame dos fatos, os homens competentes na Igreja Católica declaram: «Não consta do valor da eleição canônica deste Romano Pontífice»”
4. Conclusão
Wernz e Vidal refletem o consenso doutrinal: a única hipótese de perda do ofício pontifício ipso iure é a heresia pública, pois ela rompe o vínculo jurídico com a Igreja. Contudo, mesmo nesse caso, a eficácia prática requer um juízo declaratório da Igreja, não como um julgamento do papa, mas como constatação de um fato jurídico (defecção da fé) anterior à perda do cargo. Esta doutrina visa proteger a Igreja contra juízos privados e assegurar a visibilidade da unidade eclesial. Esta declaração só seria possível se o papa herege se submetesse voluntariamente ao escrutínio do concílio. E sem o parecer conciliar, ele continua sendo papa em pleno direito.
Quanto à eleição pontifícia, se foi aceita por toda a Igreja, não pode ser contestada muito tempo depois, como fizeram os sedevacantistas nos casos de João XXIII e Paulo VI. Tão pouco pode ser contestada se toda a Igreja Universal reconheceu e se uniu ao eleito, como fazem os sedevacantistas nos caso de João Paulo II até o atual Leão XIV.
Este é o parecer de Werzn e Vidal, teólogos e canonistas autorizados!
Notas
[1] LIMA, Alessandro. Refutando Pe. Cekada: perda de pontificado por pecado de heresia. Disponível em https://www.veritatis.com.br/refutando-pe-cekada-perda-de-pontificado-por-pecado-de-heresia/.
[2] Tratei recentemente deste assunto aqui https://alessandrolima.com.br/os-sedevacantistas-estao-certos-sobre-a-vacancia-atual-da-se-apostolica/ e em outra oportunidade aqui https://www.veritatis.com.br/a-tese-sedevacantista-de-eleicao-invalida-de-um-papa-por-pecado-de-heresia/