Por John A. Monaco
Traduzido por Alessandro Lima
A liturgia tem uma prioridade lógica sobre o papa, pois sem a liturgia a Igreja não tem razão de existir, nem capacidade de participar da vida divina da Santíssima Trindade.
A publicação do motu proprio do Papa Francisco, Traditionis Custodes , reacendeu mais uma vez os debates eclesiológicos e litúrgicos. Entre as diversas reações a este documento, destacam-se a descrença, o choque e a mágoa daqueles que amam a Missa tradicional em latim; enquanto aqueles que são favoráveis ao espírito do Concílio Vaticano II expressam vindicação, triunfo e júbilo.
À medida que os bispos se reúnem com seus rebanhos e discernem a melhor forma de implementar o motu proprio, parece haver mais ênfase dada a questões de natureza canônica e pastoral, como o futuro das comunidades de missa em latim há muito existentes, a existência de congregações religiosas vinculadas ao rito e os direitos dos padres de celebrar a missa de acordo com o missal de 1962. Com os tradicionalistas defendendo com entusiasmo o Quo Primum (1570) de Pio V e os progressistas o Missale Romanum (1969) de Paulo VI, as discussões sobre o status legal do Rito Romano tradicional continuam.
Em meio ao clamor estrondoso e à comoção onipresente, sugiro uma pausa coletiva, a fim de abrir espaço para uma reflexão de cunho mais teológico. Dada a natureza papalcêntrica deste discurso, é importante perguntar o seguinte: a Sagrada Liturgia foi feita para o papa, ou o papa para a Sagrada Liturgia?
Reações impulsivas a essa questão podem incluir uma citação do Primeiro Concílio do Vaticano (1869-70) sobre o papel inquestionável do papa na fé, na moral, na disciplina e no governo da Igreja (Pastor aeternus , III.2). A encíclica do Papa Pio XII, Mediator Dei (1947), também vem à mente, na qual ele afirma que somente o papa tem “o direito de reconhecer e estabelecer qualquer prática concernente ao culto a Deus, de introduzir e aprovar novos ritos, bem como de modificar aqueles que julgar necessários”. (58) Outras reações podem citar o Código de Direito Canônico de 1983, que deixa claro o “poder ordinário supremo, pleno, imediato e universal do papa na Igreja” (Cân. 331). Como a administração dos sacramentos se enquadra na disciplina da Igreja, não é surpreendente que o direito canônico designe a ordenação da liturgia ao papa (Cân. 838 §2) e até mesmo lhe conceda o poder de “aprovar ou definir os requisitos para sua validade” (Cân. 841).
Imediatamente, então, nos deparamos com questões perturbadoras. Se o papa tem poder sobre a liturgia, o que o impede de suprimir todos os ritos orientais e forçar as Igrejas Católicas Orientais a usar o Novus Ordo Missae , se não uma liturgia totalmente nova, elaborada para o homem pós-moderno? Se o papa pode determinar o que é necessário para a validade sacramental, o que impede o Santo Padre de substituir o pão e o vinho usados na consagração da Missa por arroz e chá?
Alguns podem argumentar que o papa jamais faria tal coisa, e apontam, com razão, os danos que tal ação poderia causar à Igreja. Outros podem descartar tais hipóteses como absurdas, alegando que o povo de Deus resistiria. Mas tal protesto não muda o fato de que, de acordo com as citações acima, o papa de fato tem tal poder — se ele escolhe ou não usá-lo é uma questão completamente diferente. Negar esse poder ao papa aparentemente colocaria em questão o próprio ofício papal.
Historicamente, os teólogos escolásticos não tinham medo de abordar tais hipóteses. O cardeal Juan de Torquemada (1388–1468), embora não lidasse com essa questão específica, sabia, no entanto, que havia limites para a autoridade papal. O papa era limitado pela lei divina e natural, pela ordem dos sacramentos e pelos ensinamentos morais (Summa de ecclesia , 3.57). Para Torquemada, a autoridade do papa estava vinculada ao seu propósito — não havia autoridade papal em abstrato, mas apenas em relação à sua relação com a Igreja, que era de confirmar a fé cristã e preservar a ordem adequada da Igreja (status ecclesiae), cuja missão é a salvação das almas. Em outra parte de seu tratado sobre a Igreja, Torquemada também observa como, entre todas as coisas necessárias para promover o bem-estar da Igreja, nenhuma é mais elevada do que aquelas pertencentes ao culto divino (maxime ad cultum divinum).
Seguindo os passos de Torquemada, o renomado filósofo e teólogo jesuíta Francisco Suarez (1548-1617) foi rápido em demonstrar como o poder papal não é absoluto em um sentido absoluto. Por exemplo, se o papa decidisse excomungar toda a Igreja, estaria em erro. O papa também erraria — e cometeria o pecado de cisma da Igreja — se derrubasse ou destruísse (evertere) ritos litúrgicos de origem apostólica (De charitate , 12.1).
Voltemos à questão original: a Sagrada Liturgia foi feita para o papa, ou o papa para a Sagrada Liturgia? Se afirmarmos a primeira, então reconhecemos a plenitude do poder (plenitudo potestatis) pertencente ao Sumo Pontífice, embora à custa de conceder que a liturgia — em teoria — poderia ser seu brinquedo. Nessa mentalidade, o papa é o árbitro final do culto divino, e se ele exige que os padres ofereçam a missa enquanto andam de monociclo, não há nada que o impeça (exceto a intervenção divina) de fazê-lo. Mesmo as garantias daqueles que sugerem que isso não é provável não acalmam o medo de que seja possível. No entanto, se afirmarmos a segunda — que o papa foi feito para a Sagrada Liturgia —, poderemos ter uma base mais firme e teológica para seu papel litúrgico, que garante a primazia do papa sem sacrificar a beleza e a verdade do culto antigo.
Com todo o respeito a tudo o que a fé católica ensina sobre seu ofício, o papa, acima de tudo, é um bispo, e um bispo é necessariamente um padre. Um padre é aquele que oferece sacrifício ao SENHOR, e o único padre verdadeiro e absoluto é o próprio Cristo (Hb 7,25-28). Todos os atos sacerdotais fluem de Seu sacerdócio, todos os sacrifícios santos de Seu sacrifício. Em suas ações sacramentais, o padre age na pessoa de Cristo (in persona Christ ), não na pessoa do papa. De muitas maneiras, o padre de fato representa o bispo, que, como observa o Catecismo, possui a “plenitude do sacramento da Ordem” (#1557). Na Igreja primitiva, o bispo era o principal celebrante da Eucaristia. A unidade da Igreja era expressa através da oferta de Cristo na Eucaristia, e o bispo representava Cristo, oferecendo a Vítima Divina ao Pai, a Cabeça oferecendo o Corpo manifestado através da assembleia reunida (synaxis). Cada Igreja local expressava sua comunhão visível por meio da reunião para a liturgia celebrada pelo bispo, e cada bispo manifesta sua comunhão com a Igreja mais ampla por meio de sua união com a Igreja de Roma, que detinha uma verdadeira primazia em relação às outras Igrejas.
Por que o foco no papa-sacerdote é importante para a nossa pergunta? Imaginemos uma Igreja indivisa, na qual todos os bispos estão reunidos para a liturgia eucarística. Pela própria natureza da Missa, só pode haver um celebrante principal. Dada a sua importância histórica e teológica, o Bispo de Roma deteria tal primazia, assim como São Pedro era conhecido como o líder dos Apóstolos. Mas em que consiste tal primazia? O papa expressaria sua primazia “presidindo em amor”, como escreveu Santo Inácio de Antioquia. Tal presidência teria seu sentido mais pleno na presidência litúrgica. Na liturgia, testemunhamos a oferta de Cristo ao Pai, a mesma oferta feita no Calvário para a remissão dos pecados. Se a primazia é considerada como “poder sobre”, então a primazia do papa — que, sugiro, é melhor vista nele servindo ao altar como bispo e sacerdote — não tem lugar na liturgia.
A liturgia não consiste em rejeitarmos Cristo e nos colocarmos na cruz, mas sim em nossa participação mística no Calvário, um sacrifício que primeiro precisamos receber antes de participar. Falar da primazia papal como “poder sobre” não passa no teste decisivo pelo qual deveríamos medir nossa identidade — na Sagrada Liturgia, a “fonte e o ápice da vida cristã”.
Se pensarmos na liturgia como uma “coisa”, então faz sentido que ela tenha sido feita para o papa, cuja supremacia foi dogmatizada no Vaticano I. Mas se entendermos a liturgia como o drama divino da salvação tornado presente, os atos salvadores do SENHOR dados à Igreja como uma montanha de tesouro, então não podemos deixar de rejeitar a noção de que o guardião de tal tesouro tem o direito de dispor dele, pois ele não se originou com ele, nem pertence somente a ele, mas sim o tesouro é dado à Igreja como seu resgate e redenção.
A liturgia não é algo que possamos compreender; é um mistério no qual entramos. A liturgia não é uma invenção das reflexões da Igreja sobre Deus, mas um dom dado à Igreja para a glória de Deus, o bem da Igreja e o amor ao povo de Deus. Como membro da Igreja — apesar de não haver ninguém terreno que lhe seja igual ou que lhe seja superior — o papa é o destinatário da liturgia, não o seu criador nem o seu mestre.
Assim, a liturgia tem uma prioridade lógica sobre o papa, pois sem a liturgia, a Igreja não tem razão de existir, nem capacidade de participar da vida divina da Santíssima Trindade. A Tradição é o veículo pelo qual a liturgia é transmitida — assim como não podemos criar um novo Calvário, Ressurreição ou Pentecostes, também é impossível “criar” uma nova liturgia. Sua substância, como escreve São Paulo, foi primeiro “recebida do Senhor” antes de ser “entregue” (1 Cor 11,23). Afinal, quando Cristo ordenou aos Seus Apóstolos: “Fazei isto em memória de Mim”, São Pedro não ousou sugerir “fazer aquilo”.
É o papa que serve à Sagrada Liturgia como seu celebrante, protetor e transmissor. Afirmar o contrário não só revelaria um grave mal-entendido da liturgia, mas também do papado.
Original me inglês: https://www.catholicworldreport.com/2021/07/28/was-the-sacred-liturgy-made-for-the-pope-or-the-pope-for-the-sacred-liturgy/