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Como um bispo herege público perderia o seu cargo durante a vigência do CIC1917?

Por Alessandro Lima

Introdução

Os sedevacantistas totalitas (doravante apenas sedevacantistas) desde a década de 70 espalharam a “lenda urbana” de que todo o clero católico que aceitou o Concílio Vaticano II tornou-se inválido ipso facto por aderir aos supostos erros conciliares. Sem entrarmos no mérito da existência ou não de erros nos ensinamentos do Concílio, neste trabalho vamos apenas verificar se a acusação sedevacantista pode ser verdadeira, caso esses erros existam. Contudo, para que a esta suposição seja ao menos verossímil, pelo menos alguns desses erros devem ser dignos da censura teológica de heresia. Por esta razão, a título de mera demonstração, vamos conceder que existam mesmo heresias nos ensinamentos do Vaticano II.

Para a nossa demonstração utilizaremos o Código de Direito Canônico de 1917 por ser o código vigente na promulgação do Vaticano II e da Missa Nova e ser o único reconhecido até hoje pelos sedevacantistas.

A Igreja só julga o foro externo, por isso, a heresia de um bispo que justifique a perda de seu cargo tem que ser pelo menos pública.

I. Princípio jurídico fundamental: perda ipso facto do ofício por heresia pública

O CIC/1917, cân. 188 §4, estabelece:

Texto latino:

Can. 188.
Omnis officii amissio ex natura rei habet effectum. Attamen praeter causas alias quae iure vel ex statutis legitime constitutis enumerantur, amittitur ipso facto quodlibet officium:
§4. Defectione a fide catholica publica;

Tradução literal:

“Perde-se ipso facto qualquer ofício, por sua própria natureza, além de outras causas legitimamente previstas no direito ou nos estatutos, também:
§4. Por defeção pública da fé católica.”

Portanto, um bispo que incorre em defecção pública da fé perde seu ofício ipso facto, ou seja, automaticamente, sem necessidade de declaração formal para que o efeito jurídico se produza internamente.

Aqui os sedevacantistas acertam. Porém, precipitam-se na conclusão. Apesar da perda jurídica ser automática no foro interno, a eficácia no foro externo e público da Igreja exige, segundo a tradição canônica, uma declaração da autoridade competente, para que o fato se torne juridicamente certo, público e produza efeitos externos.

II. Etapas processuais segundo o CIC/1917

1. Constatação da heresia pública (CIC/1917, cân. 2314)

Se um bispo caiu em heresia pública, aplica-se o cân. 2314 §1 n.1:

Texto latino:

Omnes apostatae a fide catholica, haeretici et schismatici:
1º Incidunt ipso facto in excommunicationem; privandi sunt, praeterea, si sint clerici, officio et qualibet actu legitimae potestatis, neque ipsis ullum insuperius munus sine dispensatione valide conferri potest.

Tradução:

Todos os apóstatas da fé católica, hereges e cismáticos:
1º Incorrem ipso facto em excomunhão; além disso, se forem clérigos, são privados do ofício e de qualquer ato de legítima potestade; nem lhes pode ser validamente conferido qualquer outro ofício superior sem dispensa.

Aqui há duas consequências imediatas:

  • Excomunhão latae sententiae.
  • Perda do ofício e da potestade.

Contudo, no foro externo, essa perda precisa ser reconhecida e declarada pela autoridade competente, para proteção do bem comum e da segurança jurídica dos fiéis.

2. Abertura de investigação (Inquisitio)

  • Cân. 1939-1947: Procedimento para verificação do delito.

A autoridade competente (Santa Sé no caso dos bispos) realiza uma investigação canônica sumária, com a coleta de provas da heresia pública: pregações, escritos, declarações públicas.

3. Admoestações canônicas (Monitiones)

  • Cân. 2143-2148 (procedimento penal):

São feitas admoestações formais para que o bispo herege:

  • Se retrate do erro.
  • Demonstre arrependimento.
  • Volte à comunhão da Igreja.

As admoestações são requisito ordinário antes de imposição de penas declarativas ou vindicativas, exceto em caso de notoriedade máxima.

4. Declaração de fato (Constatação de notoriedade ou sentença judicial)

Caso haja pertinácia e recusa de retratação:

  • A autoridade (Santa Sé) emite uma declaração oficial de que houve defecção pública da fé.

Essa declaração tem natureza declarativa, não constitutiva, pois o ofício já foi perdido ipso facto pelo delito.

5. Declaração de vacância do ofício episcopal

  • A Santa Sé declara a vacância da sé episcopal.
  • Isso não é uma demissão no sentido técnico, mas uma declaração de fato jurídico já ocorrido, que torna pública e executiva a perda do ofício.

Conclusão

Portanto, embora o bispo herege público perca ipso facto o ofício segundo o cân. 188 §4 do CIC/1917, essa perda só produz efeitos no foro externo após:

  1. Constatação dos fatos;
  2. Procedimento canônico sumário;
  3. Declaração pública da autoridade competente — no caso dos bispos, exclusivamente a Santa Sé.

Essa é a doutrina canônica perene, em plena consonância com o princípio de que a Igreja rejeita juízos privados sobre autoridade eclesiástica.

Os bispos que aderiram ao Vaticano II foram os mesmos nomeados por Pontífices como Pio XII, Pio XI, Pio X, Bento XV e Pio IX pelo menos! Eles não tiveram a perda da sua jurisdição confirmada pela Santa Sé, logo continuaram a ser legítimos bispos católicos. Consequentemente, a pretensão sedevacantista de que se tornaram ao final das contas uma hierarquia inválida é falsa, mesmo que se considere os ensinamentos do Concílio Vaticano II heréticos, coisa que é difícil de provar, visto que é próprio da linguagem modernista não negar o dogma frontalmente, mas com sentenças dúbias e próximas da heresia.

 

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