Por Alessandro Lima
1. Introdução
Mais uma vez no Brasil o submarino da crítica tradicionalista aos documentos do Concílio Vaticano II emergiu com a recente polêmica tendo como centro o livro intitulado “Os Erros do Catecismo Moderno” de Michael Haynes publicado pelo Centro Dom Bosco.
Um dos tópicos desta crítica é o uso da expressão “irmãos separados” pelo Decreto Unitatis Redintegratio publicado em 21 de novembro de 1964, que segundo seus defensores relativiza a Fé promovendo um falso ecumenismo com os protestantes e ortodoxos.
Ao estudarmos a evolução teológica e pastoral da expressão “irmãos separados” (fratres seiuncti), ou expressões análogas, verificamos que, ao contrário do que dizem, esse termo já era empregado em documentos do Magistério antes do Concílio Vaticano II. Destacamos alguns exemplos que comprovam tal uso, sempre alinhado à teologia tradicional da união com a Sé Romana.
Todos os grifos das citações a seguir são meus.
2. Carta Apostólica Orientalium Dignitas (Leão XII, 30 de novembro de 1894) [1]
“Proporcionando-se assim a educação da juventude eclesiástica, os estudos das ciências teológicas e bíblicas certamente crescerão em honra entre os orientais; a erudição das línguas antigas florescerá não menos que a preparação nas modernas; lucro mais abundante será tirado para o bem comum do patrimônio da ciência e das letras, no qual abundam seus Padres e seus escritores; e assim poderá ser felizmente satisfeito aquele desejo pelo qual – a exemplo do sacerdócio católico emergindo pela sabedoria e brilhando pela integridade de vida – os irmãos dissidentes buscarão mais de bom grado o abraço da mesma mãe.”
3. Carta Apostólica Amantissimae Voluntatis [2] (Leão XIII, 27 de abril de 1895. Dirigida ao povo inglês)
“Ó Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa gentilíssima Rainha e Mãe, olhai com misericórdia para a Inglaterra, vosso “Dote”, e para todos nós que grandemente esperamos e confiamos em vós. Por vós foi que Jesus, nosso Salvador e nossa esperança, foi dado ao mundo; e Ele vos deu a nós para que possamos esperar ainda mais. Rogai por nós, vossos filhos, que recebestes e aceitastes aos pés da cruz. Ó Mãe dolorosa! Intercedei por nossos irmãos separados, para que conosco, no único e verdadeiro redil, eles possam ser unidos ao supremo Pastor, o Vigário de vosso Filho. Rogai por todos nós, querida Mãe, para que pela fé frutífera em boas obras, possamos todos merecer ver e louvar a Deus, juntamente convosco, em nossa pátria celestial. Amém.”
4. Encíclica Adiutricem Populi (Leão XII, 5 de setembro de 1895) [3]
“14. […] Aliás, já que Maria, a mais amorosa de todas as mães, não pode deixar de se enternecer e de se mover à compaixão para com os homens por esta frequente e piedosa recordação de tais mistérios, o santo Rosário será., como temos dito, a oração mais oportuna para advogar junto a ela a causa de nossos irmãos dissidentes.”
5. Encíclica Caritatis Studium (Leão XIII, 25 de julho de 1898) [4]
“A ardente caridade que nos torna solícitos para com os nossos irmãos separados não nos permite, de modo algum, cessar os nossos esforços para reconduzir ao abraço do Bom Pastor aqueles que, por múltiplos erros, se afastam do único Redil de Cristo. Dia após dia, deploramos mais profundamente a infeliz sorte daqueles que são privados da plenitude da fé cristã.”
6. Encíclica Ecclesia Dei (Pio XI, 12 de novembro de 1923. Sobre São Josafá) [5]
“25. Outro laço que deve servir para nos unir aos eslavos orientais é sua devoção verdadeiramente singular à Santíssima Virgem, Mãe de Deus. Esse amor por Maria, ao mesmo tempo, os isola de muitos hereges e os aproxima de nós. Nosso Santo também se destacou por sua devoção à Santíssima Virgem e, com confiança infantil, confiou em seu favor em sua obra pela unidade. Ele costumava venerar com especial amor, à maneira dos orientais, um pequeno ícone da Santíssima Virgem, Mãe de Deus, imagem que também é tida em grande veneração pelos monges basilianos e pelos fiéis de todos os ritos, aqui em Roma, onde na Igreja de São Sérgio e Baco é venerada sob o título de ‘Rainha do Pasto’. A Ela, nossa Mãe amantíssima, rezemos, pois, especialmente sob este mesmo título, para que guie os passos dos nossos irmãos cismáticos rumo às pastagens da salvação, rumo àquelas pastagens onde Pedro, sempre vivo nos seus sucessores, Vigário do Pastor Eterno, apascenta e governa os cordeiros e as ovelhas do Redil de Cristo.”
7. Encíclica Rerum Ecclesiae (Pio XI, 28 de fevereiro de 1926) [6]
“23. Além disso, sendo verdadeiras as palavras de Cristo: ‘A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos’ (Mt 9,35; Lc 10,2), mesmo na atual situação, a Europa, de onde veio a maioria dos missionários, precisa de sacerdotes, e isso num momento em que, com a ajuda de Deus, é de suma importância que nossos irmãos separados sejam reconduzidos à unidade da Igreja e que os não católicos sejam convencidos e libertos de seus erros. É fato bem conhecido que hoje o número de jovens chamados à vida sacerdotal e religiosa não é menor do que em tempos passados; contudo, o número daqueles que obedecem ao chamado de Deus é certamente muito menor.”
8. Encíclica Orientalis Ecclesiae (Pio XII, 9 de abril de 1944)[7]
Contexto: Homenagem a São Cirilo de Alexandria e exortação à fidelidade doutrinária.
“16. Celebrando, veneráveis irmãos, a memória quinze vezes secular desta data, o que mais ardentemente desejamos é que todos aqueles que têm o nome cristão, a exemplo e sob o patrocínio de são Cirilo, promovam cada dia mais a feliz volta dos irmãos orientais dissidentes a nós e a única Igreja de Jesus Cristo. Tenham todos uma só fé imaculada; uma só caridade que una a todos juntamente no corpo místico de Jesus Cristo; e, afinal, uma diligente e operante fidelidade para com a sede de são Pedro. Para esta obra digna e meritória, deem suas forças não só aqueles que vivem nas partes do oriente (e que pela mútua estima, benévola convivência e exemplo de virtude integérrima poderão mais facilmente atrair os irmãos separados, e principalmente os ministros sagrados, à unidade da Igreja), mas também todos os fiéis cristãos, implorando e deprecando a Deus seja um por toda a terra o reino do divino Redentor, um o rebanho de todos. […]”
“17. E queira Deus que este nosso paternal e insistente convite seja recebido com benevolência também por aqueles bispos dissidentes e seus rebanhos, que, ainda que de nós separados, louvam e veneram o patriarca alexandrino como uma glória doméstica. […]”
“20. Já nada mais resta, veneráveis irmãos, senão que nesta comemoração quinze vezes secular, imploremos o valiosíssimo patrocínio deste santo doutor sobre toda a Igreja, e principalmente sobre todos aqueles que nas partes do oriente se gloriam do nome cristão, rezando sobretudo para que aos irmãos e filhos dissidentes aconteça felizmente o que ele outrora, congratulando-se, escrevia: ‘Eis que os membros separados do corpo eclesiástico, novamente se uniram, e já nada mais existe que separe pela discórdia os ministros do evangelho de Cristo.’[ Ep. 49, ib. 254.]”
Como se vê nos exemplos acima, o Papa Pio XII não se furta de chamar os ortodoxos de “irmãos separados” destacando que o seu retorno à unidade católica só se dará mediante reconhecimento de toda a verdade revelada, reafirmando a integridade doutrinal.
9. Encíclica Sempiternus Rex Christus (Pio XII, 8 de setembro de 1951) [8]
Contexto: Comemoração do XV centenário do Concílio de Calcedônia (451), em defesa da fé cristológica.
“43. E quando recentemente o furor da guerra trazia consigo a carestia, a fome e as doenças, nós, sem fazer distinções entre esses ou aqueles que nos chamam Pai, procuramos suster o aluvião de calamidades, procuramos auxiliar as viúvas, os meninos, os velhos e os enfermos. Quem nos dera ter podido ajudá-los na medida dos nossos desejos! Todos aqueles que pelas circunstâncias de épocas difíceis se separaram desta Sé Apostólica, para a qual presidir é servir, desta sé, erigida por Deus como rocha inconcussa da verdade, não queiram já tardar mais em prestar-lhe a devida submissão e reverência, e sigam os exemplos de Flaviano – esse novo João Crisóstomo em sofrer valorosamente pela justiça –; os exemplos dos Padres do concílio de Calcedônia – membros digníssimos do corpo místico de Cristo -, de Marciano – Príncipe forte, clemente e sábio –, de Pulquéria – lírio alvíssimo de régia e intemerata beleza. Dessa volta dos irmãos separados à unidade da Igreja prevemos que há de jorrar uma fonte copiosa de bens para o orbe cristão.”
“47. A esperança de que hão de voltar os irmãos e filhos há tanto tempo separados desta Sé Apostólica fez-se mais prometedora pela áspera cruz dos martírios sanguinolentos de tantos outros irmãos e filhos.[…]”.
Aqui, Pio XII alude explicitamente aos nestorianos e monofisitas como “irmãos separados”, evidenciando clara inclinação pastoral ao seu retorno, sem relativizar sua separação da Sé Apostólica.
10. Encíclica Orientales Ecclesias (Pio XII, 15 de dezembro de 1952) [9]
“7. Contudo, sabemos que também os filhos das Igrejas orientais, irmanadas com os fiéis do rito latino, suportam juntos e com fortaleza, os lutos dessas perseguições e juntos partilham também o martírio, o triunfo e a glória.[…]”
11. Encíclica Aeterna Dei Sapientia (João XXIII, 11 de novembro de 1961) [10]
Neste documento a sessão que inicia com o n. 45 chama-se “Votos pelo retorno dos irmãos separados”:
“Votos pelo retorno dos irmãos separados
- Apraz-nos, veneráveis irmãos, repetir que o coro de louvores que na antiguidade exalta a santidade do sumo pontífice s. Leão Magno foi concorde tanto no oriente como no ocidente. Oh! torne ele a receber o aplauso de todos os representantes da ciência eclesiástica das Igrejas que não estão em comunhão com Roma. Superado, assim, o doloroso contraste de opiniões acerca da doutrina e da ação pastoral do imortal pontífice, resplandecerá em amplíssima luz a doutrina que eles também professam crer: “Não há senão um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus” (1 Tm 2,5).”
12. Encíclica Paenitentiam Agere (João XXIII, 1 de julho de 1962) [11]
Contexto: Chamado à penitência e oração como preparação ao Vaticano II.
“13. Seguindo o exemplo dos nossos predecessores, também nós, veneráveis irmãos, ardentemente desejamos convidar todo o mundo católico, clero e laicato, a preparar-se para a grande celebração conciliar com a oração, com as boas obras e com a penitência. E, já que a oração pública é o meio mais eficaz para obter as graças divinas, segundo a própria promessa de Cristo: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18, 20), mister se torna portanto que os fiéis todos sejam “um só coração e uma só alma” (At 4, 32) como nos primeiros tempos da Igreja, e, com a oração e com a penitência, impetrem de Deus que este extraordinário acontecimento produza aqueles frutos salutares que estão na expectativa de todos; isto é, um reavivamento tal da fé católica, um tal reflorescimento de caridade e incremento dos costumes cristãos, que até mesmo nos irmãos separados despertem um vivo e eficaz desejo de unidade sincera e operosa, num único redil e sob um só pastor (cf. Jo 10, 16).”
13. O Catecismo Romano
Embora não seja um texto oficial do Catecismo Romano, em uma das edições brasileiras (Serviço de Animação Eucarística Mariana), num dos seus textos de apresentação traz o seguinte:
“Julgando-se na posse da verdade, os crentes pacíficos consideram, de boa fé, a Igreja Católica como uma adulteração do Cristianismo. Estes nossos irmãos separados precisam de todo o nosso amor sacerdotal. Quando há boa ocasião, devemos esclarecê-los com toda a prudência e caridade. Polêmica exacerba os ânimos , e não convence pessoa alguma. Antes de tudo, é preciso evitar termos injuriosos contra convicções alheias. O estado de alma que leva ao catolicismo é o espanto da razão ante o portento divino da Igreja, e o desejo ardente de possuir a Deus. Pelo exemplo de nossa vida, devemos mostrar aos protestantes de boa fé o milagre da Igreja, e pela nossa oração alcançar-lhes a posse de Deus no verdadeiro rebanho de Cristo. Enquanto não chegar a hora da graça, mútuo respeito deve ser o ‘módus vivendi’.” (Ensaio de Análise e Crítica, Cap. VII.)
14. Documentos da Congregação para a Doutrina da Fé sob a presidência do Card. Ottaviani
Card. Ottaviani que ficou famoso durante a realização do Concílio Vaticano II por sua intervenção a respeito do primeiro esquema sobre a Missa Nova, conhecido por sua ortodoxia doutrinal, quando esteve à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, em pelo menos duas oportunidades emitiu documentos utilizando a expressão “irmãos separados” para se referir aos batizados pertencentes a comunidades dissidentes da Igreja Católica:
“A Igreja pensa que é seu dever defender seus fiéis, para que não sejam levados a correr perigo em sua fé nem padeçam danos espirituais ou materiais.
Instrua-se, pois, os contraentes com grande cuidado sobre a natureza, as propriedades e as obrigações do matrimônio e os perigos que devem ser evitados.
Além disso, nesta matéria não se esqueça o comportamento que os católicos devem ter agora para com seus irmãos separados da Igreja católica, segundo o estabelecido solenemente pelo Concílio Ecumênico Vaticano II em seu Decreto sobre o Ecumenismo. É aconselhado que seja mitigado o rigor da disciplina vigente acerca dos matrimônios mistos, não certamente naquilo que pertence ao direito divino, mas em algumas normas introduzidas pelo direito eclesiástico, com as quais não é raro que os irmãos separados se sintam ofendidos. Pode presumir-se facilmente que esta importante questão de nenhum modo escapou ao Concílio Vaticano II, convocado pelo Sumo Pontífice João XXIII, de feliz memória, para velar pelas necessidades atuais do povo cristão. Assim, os Padres conciliares expuseram seus desejos sobre esta matéria, que, como é natural, foram considerados atentamente.” (Instrução Sobre os Matrimônios Mistos. 18 de março de 1966) [12].
“10) A todos estes temas, temos de acrescentar uma nota sobre o Ecumenismo. A Sé Apostólica, certamente, louva todos os que nos espírito do Decreto Conciliar sobre o ecumenismo, promovem iniciativas para fomentar a caridade com os irmãos separados e atraí-los à unidade da Igreja; porém lamenta que não falte quem, interpretando a seu modo o Decreto Conciliar, exija uma ação ecumênica que vá contra a verdade, assim como contra a unidade da Fé e da Igreja, fomentando um perigoso irenismo e indiferentismo, que é totalmente alheio à mente do Concílio.” (Carta Sobre Opiniões Errôneas na Interpretação nos Decretos Do Concílio Vaticano II. 24 de julho de 1966) [13].
15. Obra do ex-protestante Eurípedes Cardoso
Em 1957 teve muito sucesso entre os católicos a obra “Aos Irmãos Separados”[14] do ex-protestante Eurípedes Cardoso. No mesmo ano a pedido de diversos bispos brasileiros, no mesmo ano ganhou uma segunda edição ampliada. A obra foi publicada pela editora Agir.
16. Conclusão
Diante das evidências apresentadas, torna-se inegável que o uso da expressão “irmãos separados” e de outras fórmulas análogas possui sólida tradição no Magistério Ordinário Universal dos Papas muito antes do Concílio Vaticano II. Papas como Leão XIII, Pio XI, Pio XII e João XXIII empregaram tal terminologia não como uma concessão ao relativismo ou ao indiferentismo religioso, mas dentro de um contexto teológico claro: a afirmação da única Igreja de Cristo como a Igreja Católica, fora da qual não há salvação, e o desejo ardente de que os irmãos afastados retornem à plena comunhão com a Sé de Pedro. Portanto, a acusação de que tal linguagem representaria uma inovação modernista introduzida pelo Vaticano II não resiste à análise dos documentos do Magistério pré-conciliar. A caridade pastoral, expressa na escolha das palavras, nunca contradisse a integridade da fé, mas, ao contrário, reforçou a missão perene da Igreja: conduzir todos os homens à unidade visível no Corpo Místico de Cristo.
Notas
[2] https://www.papalencyclicals.net/Leo13/l13amantissima.htm
[5] https://www.papalencyclicals.net/pius11/p11eccle.htm
[14] https://alexandriacatolica.blogspot.com/2020/06/obra-destinada-desfazer-equivocos.html